A luta do Movimento Negro contra a violência que tem cor

Chances de uma pessoa negra ser vítima de homicídio no Brasil é 2,6 vezes maior do que uma pessoa não negra, de acordo com pesquisa.

Lucas Trapp Serpa

Imagine uma cidade inteira dizimada. Blumenau, por exemplo, tem uma população de 366 mil pessoas. E se todas elas simplesmente recebessem um fim a sua vida? É isso que acontece com a população negra no Brasil. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), o país já soma mais de 405 mil pessoas negras mortas em uma década. O número ultrapassa a quantidade de moradores de Blumenau e é mais da metade da população da capital de Santa Catarina.

Só ano passado, quase 76% das vítimas de homicídio eram pessoas negras, de acordo com o fórum. Esses dados escancaram a realidade dessa comunidade no Brasil, que sofre violência e repressão constante por conta da cor de sua pele.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Com pai negro e nordestino e mãe branca e com descendência alemã, Elisiane Roden da Silva (28), sente em sua própria pele esses problemas. Moradora de Blumenau (SC), a assistente em comunicação pública diz que é difícil se encontrar na cidade. “Praticamente a minha vida toda eu vivi com as pessoas brancas. Meu pai foi a única referência de pessoa negra”, relata.

Santa Catarina é o estado brasileiro com a menor proporção de pessoas negras e pardas no Brasil. O relatório “Santa Catarina no combate ao racismo” aponta que, de acordo com o IBGE de 2010, somente 15,5% da população no estado se reconhece como parte da comunidade negra.

Elisiane acredita que, por culpa do racismo, a trajetória e objetivos das pessoas negras se tornam mais difíceis, motivo pelo qual ela dificilmente encontra essas pessoas em posições de destaque na cidade.

“Tenho que estudar três vezes mais, fazer um trabalho mil vezes melhor, trabalhar mais, para as pessoas me reconhecerem e eu conseguir conquistar o meu espaço”, exalta Elisiane.

Ela também relata que já passou por situações de preconceito por causa da sua pele. “Eu sempre ouvia algum tipo de comentário, nada muito pesado, mas que te atinge. A pessoa falar que você é ‘moreninha’, falar do seu cabelo, é um ato de racismo”, relata.

Ela não é a única pessoa negra que se sente assim. Raysson da Silva Cordeiro, 20 anos, nasceu em Campina Grande (PB) e mora atualmente em Blumenau. “Às vezes me sinto estranho, porque dificilmente vejo pessoas da minha cor nos locais que frequento, como shopping, universidade e outros”, afirma. Raysson acredita que a pouca representatividade que existe na cidade serve apenas para cumprir “cotas”, não para realmente oferecer oportunidade para pessoas negras.

Além disso, ele percebe que grande parte das pessoas não tem interesse em aprender mais sobre o racismo e a violência contra as pessoas negras. “Às vezes acho que as pessoas jogam todo o peso da luta contra o racismo e a igualdade racial nas pessoas pretas, mas esquecem que os dois lados precisam se entender, o outro precisa estar aberto a ouvir o que nós pretos temos a falar”, adverte Raysson.

Os dois já passaram por situações de preconceito por causa da cor da pele. “Eu sempre ouvia algum tipo de comentário, nada muito pesado, mas que te atinge. A pessoa falar que você é ‘moreninha’, falar do seu cabelo, é um ato de racismo”, relata Elisiane.

Já Raysson conta que, por vir de outro estado, passa também por situações de xenofobia. Esse preconceito, de acordo com ele, geralmente vem de forma velada.

“Aquele preconceito que tá escondido na nossa cultura e que é um grande perigo. Já presenciei casos de racismo com amigos meus, onde eles foram indagados por uma mulher branca que falava que ‘iria começar a faltar gente branca em Santa Catarina’”

Em certa ocasião, Raysson ouviu de uma pessoa que ela “sente medo dessa gente do norte e nordeste que vem pra cá”.

Situações como essa são uma realidade rotineira no Brasil. Uma pesquisa do grupo de pesquisa de dados, o Instituto Locomotiva, revelou que em 2021, 84% das pessoas entrevistadas reconhecem que o Brasil é um país racista. Esse número cresce ainda mais quando se trata de apenas entrevistados negros: 89% afirmam que o país é preconceituoso.

Apesar de existirem leis que tentam proteger os direitos do povo preto – como a Lei 7.716/89, conhecida como Lei Caó de 1989, que tipifica o crime de racismo no código penal e prevê detenção de um a cinco anos para o crime de discriminação – ainda existe uma luta muito intensa pelo respeito e igualdade racial entre os brasileiros. Essa luta que engaja pessoas negras e não negras tem nome: o Movimento Negro Unificado.

Uma luta que quebra algemas

O movimento negro é um conjunto de movimentos sociais que combate o racismo e busca pela igualdade de diretos entre negros e brancos. Com início em meados do século XIX,  as principais ações contra o racismo e pelos direitos das pessoas negras aconteceram na América e na África do Sul. No Brasil, ganhou força ainda na época da escravidão, com as revoluções de escravos nas senzalas e com personalidades à frente da luta, como Zumbi dos Palmares.

Com a segregação social entre negros e brancos, diversas entidades e grupos surgiram para buscar pelos direitos da comunidade negra no Brasil e lutar por essa bandeira. Porém, o ato que solidificou o movimento no país aconteceu somente em 1978.

Naquele ano, aconteceram diversos crimes que chocaram e trouxeram revolta às pessoas negras e aos grupos do movimento. Um deles foi o caso do feirante Robson Silveira da Luz, que foi acusado de roubar frutas do local em que trabalhava em 18 de junho de 1978. Ele foi torturado e morto na 44ª Delegacia de Polícia de Guaianases, em São Paulo.

Em protesto contra esse e outros crimes motivados pelo racismo, mais de 2 mil pessoas se reuniram nas escadarias do Teatro Municipal, no centro de São Paulo. O ato aconteceu no dia 07 de julho de 1978 e fez surgir o Movimento Negro Unificado (MNU). 

Manifestantes do MNU realizam protesto em 2018. Crédito da Imagem: Movimento Negro Unificado/Divulgação/Nosso TAL

O MNU gerou diversos progressos na luta da comunidade negra, porque ele integrou todos os outros grupos e movimentos já existentes em relação aos direitos e ao respeito por pessoas negras. O MNU conquistou, por exemplo, a proclamação do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, data que também é marcada pelo assassinato de Zumbi dos Palmares.

O movimento em Santa Catarina

Os primeiros sinais da luta contra o racismo no Estado e o ponta pé para o movimento negro foram os clubes recreativos de negros. Santa Catarina chegou a ter 12 clubes de negros, criados por pessoas negras como uma forma de terem um espaço de socialização delas, já que eles não eram permitidos em clubes brancos.

Porém, o movimento ganhou fôlego somente em 1915, com o ativista Ildefonso Juvenal.  Nascido em 1894 na antiga Desterro, atualmente Florianópolis, Ildefonso é filho de um homem alforriado e uma mulher negra livre. Ele se tornou órfão aos 12 anos e se alistou na Escola de Aprendizes para Marinheiros. Ele usou da educação como meio para se destacar entre os outros e conquistar o seu espaço. Seu primeiro livro, “Contos Singelos”, foi o primeiro passo para promover sua carreira profissional.

Ildefonso também trabalhou em jornais como “O Azar” e “O Miliciano”, atuou na Polícia Militar como professor de alfabetização e se formou farmacêutico. Membro de várias associações literárias, foi cofundador do Centro Cívico e Recreativo José Boiteux, do Centro Catarinense de Letras, da Associação Promotora da Herma de Cruz e Sousa, além de outras instituições. Durante sua vida, foi responsável por 17 obras publicadas sobre diversos campos do conhecimento, além de artigos escritos para jornais do Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. Seu nome foi importante para o reconhecimento das pessoas negras e para impulsionar e fortalecer o movimento regional.

Atualmente, existem alguns grupos e organizações que combatem o racismo e conscientizam as pessoas sobre a vivência negra. Um desses grupos é o Moconevi. O Movimento de Consciência Negra do Vale do Itapocu foi fundado em 05 de agosto de 2001, na cidade de Jaraguá do Sul. Com abrangência em outras seis cidades do estado, o Moconevi promove o enfrentamento do racismo e combate de todo o tipo de preconceito e discriminação racial.

Um dos seus principais objetivos é criar lideranças negras na região e promover a cultura e história do povo preto. Com cerca de 20 integrantes fixos, o grupo não está atrás apenas de novos voluntários, mas também em conscientizar as pessoas. “O objetivo não é fazer com que as pessoas participem da associação em si, mas envolver as pessoas”, explica o coordenador do grupo, Luís Fernando Olegar, 52. Professor de Educação Física, ele acredita que o movimento gera representatividade para as pessoas.

“A história dos negros fica à margem, fica escondida. Quando eu cheguei em Jaraguá do Sul, me falavam que não tinham negros na cidade”, recorda.

Armas contra o racismo

Em 2021, de todas as crianças de 0 a 9 anos de idade que foram mortas de forma violenta no Brasil, 63% eram negras. Entre adolescentes brasileiros de 15 a 19 anos, o percentual é ainda mais alto: 81% são negros. Os dados são do relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mostram que, nem mesmo na fase da infância, pessoas negras estão seguras contra o preconceito.

De acordo com Luís Fernando, para mudar essa realidade, o papel da educação e das escolas na conscientização é fundamental. “Quando você começa a trabalhar numa escola desde pequeno, você começa a fazer com que a criança negra tenha um impacto um pouco menor do racismo”, avalia o professor e coordenador do Moconevi.

Manifestação de estudantes contra ato de racismo. Crédito das imagens: Lucas Trapp Serpa/ Divulgação/Nosso Tal

O professor universitário Carlos Alberto da Silva, 53 anos, acredita que a educação é uma ferramenta importante para o combate ao racismo, independentemente da idade do estudante. “A educação é um dos instrumentos, um dos dispositivos para combater a violência ou crime de racismo. E a educação serve para formar o cidadão, para orientar e para resgatar a história do povo brasileiro. Para o povo brasileiro se entender como um povo da diversidade”, ressalta.

Carlos foi um dos fundadores do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab). O núcleo funciona como uma assessoria, que usa da pedagogia para trabalhar a cultura afro-brasileira com estudantes da Universidade Regional de Blumenau (Furb). Fundado em 2014, o professor acredita que o Neab tem um papel fundamental para estudantes negros na universidade.

“Vai impactar a vida dos estudantes negros, sobretudo quando ele é apresentado para os estudantes que estão ingressando na universidade, sendo apresentado como esse núcleo de acolhimento, onde outros estudantes negros e professores negros e não negros estão ali, como ponto de acolhimento e de referência”, comenta.

Mas somente a educação não é suficiente para ganhar essa luta. De acordo com Carlos, a necessidade de novas políticas que envolvam a educação e outros meios para facilitar e disseminar o conhecimento, a inclusão e a diversidade, são urgentes. Luís compartilha da mesma opinião. “O trabalho do Movimento Negro teve um foco muito firme nas políticas públicas. Porque assim como as políticas públicas historicamente nos prejudicaram, elas podem ser o caminho para que possamos resgatar muitas coisas”, afirma.

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