Violência doméstica: SC registrou, em média, 18 casos por dia em 2021

Até o final de outubro, o Poder Judiciário havia registrado 5.416 processos de violência doméstica no Estado, sendo 332 deles registrados em Blumenau

Entre os dias 1° de janeiro e 31 de outubro de 2021, o Poder Judiciário de Santa Catarina recebeu 5.416 processos envolvendo violência doméstica em Santa Catarina. Esse número representa cerca de 18 casos por dia, em média. Só em Blumenau, nos primeiros 10 meses do ano, foram encaminhados para o Judiciário 332 casos de violência doméstica. 

Segundo o art. 5º da Lei Maria da Penha, violência doméstica e familiar contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Ou seja, diferente doq ue boa parte da população imagina, a violência doméstica não se resume apenas à violência física. 

Conheça os tipos de violência qualificados na legislação

A violência física é entendida como qualquer conduta que lesione a integridade ou a saúde corporal da mulher. A violência psicológica é a que causa dano emocional e diminuição da autoestima, prejudica e perturba o pleno desenvolvimento da mulher ou que tenha como finalidade degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões da mulher.

A violência sexual está relacionada com qualquer conduta que provoque constrangimento para a mulher, que acaba sendo obrigada a presenciar, manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força.

Uma das menos conhecidas, a violência patrimonial envolve qualquer conduta que configure a posse, a subtração, a destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as necessidades da mulher.

O último tipo de violência contra a mulher previsto em lei está relacionado com a violência moral, que envolve qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria contra uma mulher.

Como o ciclo da violência se desenvolve em um relacionamento 

Um estudo realizado pela psicóloga norte-americana Lenore Walker aponta que as agressões feitas dentro de um relacionamento conjugal ocorrem dentro de um ciclo de violência que se repete. Na fase um desse ciclo, chamada de “aumento da tensão”, o agressor se mostra irritado e tenso por coisas simples, podendo também humilhar a vítima, fazer ameaças e destruir objetos. Por seu lado, a vítima destas agressões sente tristeza, angústia, ansiedade, medo e desilusão.

Na fase dois, conhecida como “ato de violência”, o agressor fica sem controle. Toda a tensão que foi acumulada na fase um se transformar em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Nesta etapa do ciclo, a vítima sofre uma tensão psicológica severa, o que pode resultar em perda de peso, fadiga e ansiedade, além de sentir medo, ódio e solidão.

Na terceira fase do ciclo de violência, também chamada de “arrependimento e comportamento carinhoso”, o agressor se torna amável com a vítima. O objetivo dele é conseguir a reconciliação. Nesta fase a mulher se sente confusa e pressionada, especialmente se tiver filhos. Segundo Lenore Walker, este é um período calmo em que a vítima se sente feliz.

Segundo a psicóloga, essas três fases do ciclo vão se repetindo até que o ciclo seja quebrado. Com o tempo, o intervalo entre uma fase e outra do ciclo tende a diminuir, com o registro de agressões em mais fases, podendo terminar em feminicídio.

Os números de feminicídios no país e a mudança na legislação desde 2015

Dados do Atlas da Violência 2021, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que, em 2019, foram mortas no Brasil 3.737 mulheres, o que corresponde, em média, a 10 mulheres por dia. Esse número, se comparado ao ano de 2018, representa queda de 17,3%. Ou seja, em 2018, o Brasil registrou 4.519 feminicídios, o que representa cerca de 12 mortes por dia. 

A Lei Nº 13.104, promulgada em 2015, alterou o artigo 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o chamado Código Penal. A partir da mudança na legislação, o feminicídio passou a configurar como circunstância qualificadora do crime de homicídio.

Na prática, houve aumento de pena para os assassinos que matam mulheres por sua condição. Desde 2015, a pena nestes casos é aumentada em até um terço se o crime for cometido quando a mulher estiver grávida, caso ocorrer três meses depois do parto, se for praticado contra vítimas com menos de 14 anos ou mais de 60 anos, assim como na presença de descendente ou de ascendente da vítima. 

Segundo dados do TJSC, em outubro de 2021, Santa Catarina registrava 25.907 processos de violência doméstica em andamento. Desses, 817 casos foram registrados  em Blumenau.  

Como identificar um relacionamento abusivo e romper o ciclo da violência

Mulheres vítimas de agressão muitas vezes tem medo de falar sobre o assunto e de denunciar o agressor. A psicóloga Maiara Pricila Sehnem, que atua em Blumenau, explica como é desenvolvido o trabalho de apoio às vítimas.

“Esse não é um tema fácil. Quando uma mulher denuncia assédio, ela sofre violência em dobro. Vão questionar suas vestimentas, sua conduta, o horário em que ela estava na rua, vão minimizar seu relato, questionar sua palavra. E isso acontece em todas as instâncias, do ambiente doméstico à delegacia, passando pelo hospital. Então nosso trabalho é dar a escuta qualificada e todo apoio necessário, auxiliar nos próximos passos e fazê-la entender que (ela) não está sozinha”, comenta.

Maiara recomenda que as mulheres aprendam a identificar os relacionamentos abusivos e a identificar os riscos que podem estar correndo ao se relacionarem com pessoas acostumadas a este perfil de relacionamento. “Há muitos sinais, porque o abuso não significa uma agressão ‘do nada’. Ninguém chega dando tapa na cara da namorada. Até porque, se fizer isso, ela vai cair fora. Então, o abuso pode culminar na violência física, mas ele começa com as formas verbal e psicológica. É muito importante notar que existe um mito de que ciúme é um sinal de amor. Isso não é verdade”, explica.

A psicóloga complementa: “Muito ciúme não quer dizer mais amor, e sim que a pessoa está te manipulando. Esse abuso acontece pelo controle, e é representado por falas como ‘eu te amo tanto que te quero só para mim’ ou ‘eu te amo tanto que vou te dar tudo, então não quero que você trabalhe’. É muito importante identificar esses casos para conseguir sair do ciclo da violência ou de um relacionamento abusivo”.

Além da recomendação para que as mulheres busquem identificar os primeiros sinais de relações abusivas e evitarem que o ciclo da violência comece a se instalar nas suas vidas, Maiara alerta para o fato de que muitas histórias de violência não são denunciadas por medo, por falta de informação e, muitas vezes, porque a mulher acha que o que ela está vivendo é normal.

A psicóloga lembra, até hoje, de uma história marcante que vivenciou quando estava fazendo estágio: “Fui fazer uma visitação em um aldeia indígena, onde conheci vários casos. Um deles era o de um pai que abusava sexualmente da esposa e da filha, e ambas acreditavam que aquilo era ‘certo’ e ‘normal’, porque fazia parte da vida delas. Onde elas não tinham nenhuma intenção de estar denunciando. Então, fazer o papel de tentar explicar que isso não era certo, foi bem pesado e dolorido”. 

Confira, neste boletim, um pouco mais sobre o assunto.

Ações de combate e de apoio

Para combater números tão elevados e situações tão recorrentes, leis são criadas e ações são realizadas em diferentes esferas públicas e da sociedade. Em Blumenau, o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Famílias e Indivíduos (PAEFI), atende, no final de 2021, uma média de 450 pessoas.

Desse total, 37 são mulheres. Pouco mais de metade delas, um total de 15 mulheres, participam de encontros que buscam ajudá-las em suas demandas e a promover a socialização.

A psicóloga e coordenadora do serviço, Erica da Silva, explica como esse trabalho é desenvolvido: “O PAEFI atende tanto situações de famílias que chegam por algumas questões de negligência, que quando vamos ver no plano de fundo tem a questão da violência doméstica, assim como egressos da Casa Eliza, atende famílias antes de ir e depois que saem de lá. O acompanhamento é feito por uma psicóloga e uma assistente social, para que elas superem essa situação.”

Centro Especializado de Assistência Social – CREAS II, localizado na Rua Progresso, 167, no bairro Progresso, em Blumenau. Crédito da imagem: Reprodução Google Maps/Nosso TAL

Núbia: 30 anos sendo vítima de violência dentro de casa

Núbia* tem 54 anos e mora em Blumenau, tem filhos e tem sonhos. Foi vítima de violência por 30 anos até ter coragem de denunciar o ex-marido e de pedir ajuda. Em entrevista para o Nosso TAL, ela conta que, no início, sofria com a violência física, quando era espancada. Depois, a violência passou a ser psicológica, quando o ex-marido a proibia até de tomar banho.

“Nem tomar banho eu podia. Eu falei para as meninas (da assistência social) que até as crianças ele proibia. Às vezes eu ia tomar banho quando ele já tava na cama dormindo e ele dizia ‘pra que vai tomar banho? Quer dormir cheirosa por que se não dorme comigo?’. Aí eu dizia que eu tomava banho pra mim, não pra ele”, recorda. 

Para Núbia, o apoio da PAEFI foi fundamental para ela sair da situação de violência doméstica. “Eu sou acompanhada há muitos anos por elas (equipe do PAEFI). Elas que me deram bastante apoio, são assistentes sociais excelentes. Muito apoio a gente tem lá. Então conversando com elas eu decidi, fui na delegacia, em 24h ele foi tirado de casa e hoje o meu modo de pensar é: ‘por que eu não fiz isso antes?’. Porque foram 30 anos… meus filhos crescendo e vendo aquilo”, reflete.

Hoje, Núbia conta com uma medida protetiva. Apesar de toda a violência que sofreu, ela diz que tem esperança por dias melhores e que, agora, se sente feliz. “A separação foi muito boa. No momento, tá sendo muito boa. Ele não deixava eu limpar a casa. Agora, eu posso. Eu tenho sonhos, e pela minha idade, com 54 anos, acho que posso conquistar eles”, finaliza.

Núbia é mais uma mulher, mais uma que fez parte das estatísticas de violência doméstica. Uma mulher vítima de abusos que superou essa condição e que, agora, diz que tem sonhos e que ainda pretende conquistá-los. Leis, ações, palestras e abrigos nunca serão o suficiente para zerar os números, mas são iniciativas e caminhos que trazem esperança de dias melhores para muitas mulheres que ainda sofrem com relacionamentos abusivos e violência doméstica.

* Para preservar a identidade de Núbia, que recebe apoio do PAEFI e que conta com uma medida protetiva, utilizamos apenas o primeiro nome dela nesta reportagem.

Repórter: Luana de Oliveira.

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