Raízes indígenas resistem no leste catarinense

Conheça, através da perspectiva de dois habitantes, a comunidade indígena Tekoá Vya, a Aldeia Feliz

Matheus Martins e Taynara Schemes

Afastada da cidade, em Major Gercino, a aproximadamente  110 km de Blumenau, a comunidade indígena Tekoá Vy’a, de etnia Guarani Mbyá, é rodeado pela natureza e a conexão com a terra. Às margens do rio Tijucas, aproximadamente 30 famílias estabeleceram suas moradias e, de forma colaborativa, protegem sua cultura do desaparecimento. 

Artesanatos, celebrações, o relacionamento com a natureza, a língua nativa preservada e uma organização social diferente, fazem parte do dia a dia das mais de 130 pessoas, dentre as quais 60 crianças, que vivem no espaço. Um dos moradores é o professor indígena Alexandre Ortega Gonçalves, que encontrou acolhimento na comunidade. “Eu nasci no Rio Grande do Sul e já morei em São Paulo. Em 2005, fiz uma visita aos meus parentes e vim conhecer a região. Gostei da população e do jeito que me tratavam, que conversam e recebem os visitantes”, explica Gonçalves, ao relatar o porquê resolveu ficar. 

Mas a comunidade nem sempre esteve no mesmo local. Desde 2009, a população deixou a sua terra, em Palhoça, no Morro dos Cavalos, à beira do asfalto, por conta da duplicação da BR-101. Na época, o Cacique da aldeia procurava um novo lugar, com um espaço destinado ao plantio e que tivesse um rio. Ao encontrar o local, onde a comunidade reside atualmente, o adquiriu com o dinheiro recebido da indenização pela desapropriação da antiga terra. 
O território ficou conhecido como Aldeia Feliz, por ter uma extensa área de natureza e terra, com quem a população indígena mantém uma relação afetuosa, a reconhecendo como uma mãe. “Porque ela cria e alimenta, que nem nós, seres humanos, com nossos filhos e, por isso, queremos preservar ela, para não deixar morrer, porque, se ela faltar para nós, vai faltar tudo”, afirma Alexandre, explicando que, na aldeia, para a alimentação, há plantio de milho, mandioca, banana, pesca e caça, e que compram alimento externos também.

As recepções de visitantes, por sua vez, ficam por conta do canto e alegria. É na casa redonda que acontecem as trocas culturais entre os nativos e os convidados, até mesmo de outras aldeias. Espalhados pelo chão de terra, estão os trabalhos artesanais confeccionados pela comunidade, uma das formas de manutenção da cultura, que é ensinada para as novas gerações e configura uma fonte de renda para cada indígena. Além do artesanato, um dos moradores da aldeia tem um trabalho externo, como motorista da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e outros atuam como agentes de saúde e saneamento, e professores na própria comunidade. 

Educação na aldeia

As crianças frequentam uma escola local, construída pelos próprios moradore. Seis  professores indígenas, que também fazem parte da Tekoá Vy’a, são responsáveis pelos ensinamentos. Para Alexandre, professor de língua nativa, apesar dos desafios, os docentes buscam ensinar, todos os dias, sobre a cultura e tradições da aldeia. 

O educador ainda ressalta que os ensinamentos obtidos na escola são aplicados na realidade da comunidade, em cada família. “Se você pegar uma matéria de matemática, por exemplo, em uma escola não indígena é muito diferente porque, na cultura indígena, a matemática já está sendo praticada dentro das casas. Quando uma criança pergunta ‘quantos irmãos ele tem?’, os pais vão responder que ele tem cinco irmãos e aí já incluímos a matemática”, explica Gonçalves. 

Desde 2010, a comissão da Câmara de Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação, estabelece as diretrizes nacionais para a educação escolar indígena no Brasil, assegurando o direito, já previsto na Constituição Federal de 1988, a um ensino que valorize as línguas e os conhecimentos  tradicionais das aldeias indígenas, além de garantir que a organização das escolas leve em consideração as práticas socioculturais e econômicas da comunidade. “A questão da educação está no artigo 31 da Constituição de qual é o direito do indígena na escola. É chamada de educação diferenciada, mas, ao mesmo tempo, não estão sendo trabalhadas  essas questões”, diz o professor. 

Assim como Alexandre, a professora e doutoranda em Desenvolvimento Regional, Vandreza Amante Gabriel, reconhece desafios na educação dos povos indígenas do Brasil. “Durante minha pesquisa no Tekoá Vy’a pude observar alguns obstáculos referentes à educação escolar indígena como a escola ser uma política de Estado levada às Terras Indígenas com regras e institucionalidades que se distanciam do cotidiano da comunidade”, explica.

Cuidados com a saúde

Para além da educação, a comunidade recebe a visita de um assistente de saúde a cada 15 dias. O profissional examina todas as crianças e adultos. No entanto, quando um membro da aldeia adoece, a primeira pessoa para quem recorre é o pajé, intermediário espiritual capaz de curar através da fé e plantas medicinais. Mas, se o mal-estar permanecer, os indígenas não exitam em procurar um médico. 

Os cuidados com a saúde também servem para as mulheres. Márcia Macena mudou-se para a aldeia Takoa Vy’a quando se casou, e, hoje, já tem cinco filhos, quatro meninas e um menino. A indígena conta que sua primeira gestação foi uma experiência incrível. “Na nossa cultura a criança é uma benção, que fortalece. Então, a gente fica feliz quando tem o primeiro filho”, afirma. 

Durante todas as gestações, Márcia recebeu o atendimento pré-natal como qualquer outra mulher. Fez o acompanhamento de toda a gestação pelo posto de saúde mais próximo e, quando a hora do parto chegou, escolheu dar à luz no hospital da cidade.  “Se a mãe quiser ter o bebê na comunidade, ela pode. Eu não quis ter filho aqui na aldeia, eu preferi ter na maternidade, em um hospital, mas as mulheres que decidem realizar o parto na aldeia contam com a ajuda de uma parteira”, explica a mãe.

Após um ano de vida, os bebês são batizados em uma cerimônia, organizada por toda a aldeia, celebrando a chegada de cada nova criança. O pajé é o responsável por nomear o novo morador da comunidade, mas segundo Márcia Macena, o nome não é escolhido por ele, mas pelos espíritos.

Cultura

Na própria estrutura da aldeia, é notável que a cultura indígena permanece viva. Além da casa redonda, a aldeia possui uma casa de reza, onde o pajé faz rituais, a dança e o canto. Em volta, as moradias de cada família, construídas de material. “Só as casas que são diferentes, a cultura continua no meio da gente, nas brincadeiras das crianças e na nossa roda de conversas. O tempo muda, as coisas mudam, a população muda, como vocês, às vezes têm uma lei e no próximo ano já estão mudando de lei. Nós também nos desenvolvemos,  porque somos seres humanos”, afirma Alexandre. 

Outro aspecto cultural na Tekoá Vy’a, além da língua e o cultivo de alimentos, é o uso do tabaco para fumar em meditações, curas e celebrações, como uma espécie de instrumento da fé. 

Relação com a comunidade é baseada no respeito às diferenças

Alexandre avalia a relação com a população de Major Gercino como boa. Para ele, o que deve predominar é o respeito. “As pessoas não devem ter um olhar diferente de um ao outro. Nós, aqui da comunidade, pensamos assim, um pessoa branca (como costumamos chamar) quando chega aqui na aldeia, é só a língua que diferencia. Se essa pessoa come, dorme, tem sentimento, amor, tem sangue, carne e osso, é a mesma coisa que nós. Então, para que ter um olhar diferente?”, questiona. 

Ao falar de direitos, Alexandre diz que a vontade de ficar triste é inevitável,  já que muitos deles são descumpridos no Brasil, entre os quais o direito à terra. “Está muito complicado hoje em dia, mesmo sabendo que na Constituição de 1988, no Artigo 32, está escrito que é direito dos indígenas a demarcação de terra, a população não indígena não reconhece”, contesta o professor. 

Assim como outras comunidades brasileiras, a de Major Gercino acompanha a atuação dos parentes a nível nacional, explica Vandreza Amante Gabriel. “Alguns integrantes do Tekoá Vy’a, em geral professores indígenas, participam de diversos encontros regionais, nacionais e que envolvem outros países da América Latina. É uma rede para a garantia de direitos fundamentais, como a demarcação de terras, educação e saúde diferenciada, em um movimento contra as violências estruturadas desde o período da colonização europeia no território”, conta. 

A Unesco escolheu 2019 como o ano Internacional das Línguas Indígenas. Segundo a professora, esse conteúdo é trabalhado na escola indígena como uma forma de discutir o contexto em que os povos indígenas estão inseridos na atualidade. “É uma forma de decidirem em conjunto as pautas de reivindicações como um movimento social”, salienta. 

As lutas por direitos travadas pelos mais velhos também são reconhecidas pela comunidade. “Eles iam até Brasília, Paraná, Rio Grande do Sul e, em todos esses eventos, foram para conquistar os nossos direitos, mas, mesmo assim, somos desrespeitados, tanto na saúde, na educação e nas demarcações”, diz Alexandre.

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